Morte da interação?

Este texto foi escrito a quatro mãos: Bianca Becker e Paulo Victor Sousa.

Em tempos em que a presença massiva das tecnologias digitais de informação e comunicação na vida cotidiana é uma realidade cultural, prolifera-se uma ampla gama de textos e vídeos opinativos sobre os pretensos perigos associados ao seu uso na vida cotidiana, sobretudo aqueles relacionados ao enfraquecimento das habilidades sociais de crianças e adolescentes. Um exemplo bem específico sobre a forma como nos relacionamos encontra-se nesta matéria. Outros exemplos que seguem essa retórica se encontram nos vídeos a seguir.

Tais opiniões, construídas exclusivamente para, e com linguagem adequada ao público leigo, propõem uma responsabilização particular das tecnologias como causa, ou principal influência, para o surgimento e manutenção de grande parte dos desajustes familiares e sociais, em especial àqueles que circundam o complexo prisma que representa a interação – um dos conceitos-chave que move este grupo de pesquisa – como se a tecnologia, por si só, tivesse uma capacidade patológica inerente ao seu funcionamento. O exemplo abaixo é ainda mais contundente e até irônico (sem que se aperceba da própria ironia) ao propor utilizar a tecnologia para combater… a tecnologia!

O direcionamento do olhar e os prognósticos sugeridos levam o público a pensar na possibilidade real de enfraquecimento e consequente morte da interação a partir da presença das tecnologias digitais no cotidiano relacional, possibilidade a que todos estaríamos sujeitos, porém com um apelo e gravidade muito maiores se ocorrida na infância e na adolescência – períodos considerados especiais para a formação da personalidade do indivíduo e desenvolvimento do sujeito social. Para além de uma reflexão aprofundada sobre os aspectos socioculturais, políticos e econômicos que desencadearam no processo de invenção dos conceitos de infância e adolescência e no surgimento da escola no âmago da modernidade (COLL, et al., 2009; NASCIMENTO, et al. 2008), chama atenção a semelhança do caráter apocalíptico dos argumentos promovidos pelas análises atuais com aqueles presentes nos clássicos da literatura especializada em infância do início da década de 80 que descreviam as consequências aterrorizadoras dos efeitos a médio e longo prazo da entrada da televisão e outras tecnologias no cotidiano familiar, como as obras de David Elkind “Sem tempo para ser criança” e de Marie Winn “Crianças sem infância”, que sugeriam a inevitável morte da infância promovidas pelas massificação e difusão de tecnologias nas famílias (BUCKINGHAM, 2000).

Visualizados como um continuum de uma mesma perspectiva, os links dispostos acima pouco dialogam com a tecnologia, preferindo enxergá-la quase como um corpo estranho no dia a dia e negando-se a abrir os olhos para novas possibilidades em termos de interação, aprendizado, aumento da inteligência, realização do trabalho, dentre outras atividades rotineiras. Num dos relatos, uma garota preferia usar o tablet a brincar com os amigos. Esse parece ser um caso que realmente merece um olhar atencioso dos pais, especialmente se a criança não agia segundo o pressuposto corriqueiro para aquela idade. A preocupação parece válida. Mas e quando não se percebe o aumento e a complexificação de outras atividades sociais? Não devemos falar, então, que a inteligência social, na contemporaneidade, passa também por mediações sociotécnicas?

Atribuir à tecnologia a causa mortis da interação acaba por ser um raciocínio pouco aprofundado. Igualmente é raso aquele olhar que transita ao lado do otimismo febril, tão problemático quanto seu oposto, como se a tecnologia fosse capaz de resolver todos os problemas ou melhorar quaisquer conjunturas. Nem sempre. De qualquer forma, sempre assustam os discursos que culpabilizam celulares, tablets, TV e computadores em relação aos modos originais de interagir. Isso precisa ser problematizado.

Como pesquisadores interessados no tripé interação, tecnologias digitais e sociedade, a difusão da atmosfera de medo e quase inevitabilidade da morte da interação frente à realidade das tecnologias digitais nas relações cotidianas nos preocupa, nos intriga e nos propõe uma série de questionamentos que nos levam a (re)visitar e quem sabe a (re)criar novas possibilidades conceituais para fenômenos que hoje possuem formas próprias de manifestação – típicas de um mundo primordialmente conectado, cujos conceitos clássicos já não dão conta se considerados a partir da perspectiva sócio-histórica em que foram construídos. Para impulsionar estas reflexões e questionamentos, apresentamos três despretensiosas cenas da vida comum de crianças presenciada por nós nos mais diversos espaços de convívio social, relatadas e discutidas informalmente em nossas reuniões. Aqui seguem como breves relatos, mas voltaremos sempre a elas para discutirmos e aprofundarmos nossas reflexões.

Ainda que não tenham sido capturadas em circunstâncias rigorosas, formais ou controladas, são situações que ilustram como o papel da tecnologia diante da sociabilidade de crianças e adolescentes varia radicalmente a depender do olhar do observador. E se com essas breves observações informais não podemos necessariamente destacar qualquer afirmação concreta em torno dos dispositivos tecnológicos em mãos, ao menos pomos em xeque algumas outras certezas quanto ao caráter de vilão e apocalíptico que alguns olhares teimam em lançar para a tecnologia como um todo. Vejamos:

Cena 1: A fila da roda gigante e o iPhone coletivo

A fila da roda gigante, nova atração da cidade, estava imensa e aborrecedora. Como forma de conter a ansiedade do filho, a mãe dá seu iPhone para que ele possa ficar um pouco quieto durante a longa espera. A entrega de dispositivos tecnológicos nas mãos das crianças nas mais diversas situações sociais com o intuito de contê-las de comportamentos considerados inconvenientes pelo mundo adulto tornou-se um lugar-comum em nossa sociedade a ponto de tornar-se parte banal do cenário, afinal, quem nunca? No entanto, algo naquela dinâmica cotidiana imediatamente chamou atenção, não somente pela maneira inusitada com que a cena se reestruturou, mas, sobretudo pela rapidez desta mudança: em cerca de dois minutos, sim, em aproximadamente 120 segundos, o menino (com o iPhone da mãe na mão) inicia uma conversa com um menino logo à sua frente na fila, com o outro mais à frente e de repente, inicia-se uma competição onde é acertado que cada menino joga uma rodada de um jogo do aplicativo daquele iPhone – algo sobre corrida de carrinhos. Este iPhone começa então a ser circulado de criança em criança ao longo da fila da roda gigante, alternando as rodadas e os competidores. Ao todo, quatro crianças envolveram-se na competição: três meninos e uma menina. De repente, a configuração da fila aparentemente entediante da roda gigante ganha uma nova dinâmica, com barulhos e movimentações inesperados, pois enquanto uma criança manipulava o dispositivo durante o jogo, as outras ensaiavam palpites, incentivos, vocalizações de freadas, acelerações, batidas do automóvel contra a parede e até uma pequena torcida quando alguém tinha um desempenho fora do comum. Como a prescrição técnica daquele aplicativo era para uma performance individual, o grupo de crianças viu-se na necessidade de negociar novas regras e criar estratégias para torná-lo um jogo coletivo: o critério de vitória definido foi o melhor desempenho na tal corrida – marcado pelo menor tempo a completar o circuito. Para tanto, o smartphone de outra mãe passou a ser usado como bloco de notas dos escores para verificação da classificação dos competidores. Nenhuma criança em nenhum momento perguntou o nome do companheiro de brincadeira. A palavra “amigo” substituiu a necessidade do nome: “Mãe, empresta seu telefone para marcar os pontos dos meus amigos?”. A brincadeira terminou quando um dos competidores subiu na roda gigante, coincidentemente, o vencedor da competição. Enquanto este realizava os procedimentos de segurança para entrada na roda gigante com sua família, os outros três competidores que ainda aguardavam na fila concluíram a brincadeira com uma pequena narrativa: “E como prêmio, o campeão mundial de velocidade vai subir na maior roda gigante do mundo”. E vocalizaram gritos de torcida e aplausos.

Cena 2: O jogo de imitação entre crianças que “nunca interagiram”

Duas crianças de aproximadamente 4 ou 5 anos, que aparentemente não se conhecem, estão sentadas com suas famílias em lados opostos de uma pizzaria. Cada uma com um tablet na mão. Parece que se repete novamente aquela premissa do dispositivo móvel como ferramenta apaziguadora de ânimos, cuja principal função é manter as crianças “bem comportadas” em ambientes públicos, longe, portanto dos olhares reprovadores dos adultos. Enquanto os adultos de ambas as mesas conversam animadamente, uma criança percebe a presença da outra pelo tipo de som que o tablet faz (comprovando que estão brincando com o mesmo aplicativo). Inicia-se então uma silenciosa brincadeira de imitação, onde uma criança propõe um som no tablet, a outra imita, uma coloca o tablet na cabeça, a outra imita, coloca o tablet debaixo do braço e bate palma, a outra imita. Ambas sorriem a cada fechamento da imitação. As trocas silenciosas de olhares e os sorrisos tímidos definiram o ritmo da brincadeira: a criança que imitava era a próxima a propor novos sons ou movimentos. Passaram quase todo o tempo dos respectivos jantares nesta brincadeira até uma das famílias ir embora. Durante todo o tempo em que permaneceram na pizzaria, as crianças não trocaram nenhuma palavra uma com a outra. Da mesma forma, nenhum dos adultos de ambas as famílias percebeu a brincadeira. Aos olhares menos atentos, a interação foi zero.

Cena 3: O esconde-esconde e o “problema” do Whatsapp

Era horário de saída da escola e um grupo de crianças de 9 a 10 anos brincava do clássico esconde-esconde enquanto esperava seus pais. Todas com smartphone na mão e trocando mensagens por Whatsapp entre um movimento e outro durante toda a brincadeira. Apesar da minha ávida curiosidade de pesquisadora das culturas lúdicas infantis frente às novas tecnologias; apesar de toda a defesa teórica e ideológica da necessidade de possibilitar que as crianças compreendam e falem sobre os fenômenos a partir de seus próprios olhares e experiências, meu olhar adulto me trai e toma frente na percepção da cena ao notar aquele grupo de crianças atuando de forma tão diferente da qual eu concebia uma brincadeira de esconde-esconde. Aquelas velhas e combatidas oposições real x virtual, embora negadas veementemente, me assaltaram imediatamente e quando menos percebi, a contradição da fala já tinha sido estabelecida e externalizada. Perguntei a uma criança que se escondera perto de mim: “Como você consegue brincar de esconde-esconde e falar no Whatsapp ao mesmo tempo?” “Mas eu preciso dele, tia. A gente está aqui combinando o lugar de esconderijo de cada um pra (fulaninho) não conseguir achar a gente nunca. Com o Whatsapp o esconde-esconde fica mais emocionante”. Nesta hora percebi que antes de novos conceitos, os novos fenômenos requerem urgentemente novos olhares.

Portanto, antes de pensar nas possíveis mortes da interação, acreditamos que seja necessário fazermo-nos outra pergunta: O que é interação, como ela se caracteriza e se define? Os formatos de interação convencionais dão conta das ações que vemos na atualidade? Parece urgente, no fim das contas, que novos olhares sejam construídos. As próximas postagens darão conta dessa tentativa.

Crédito imagem em destaque:   Freepik

Referências:

BUCKINGHAM, D. Crescer na Era das Mídias Digitais. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

NASCIMENTO, C. T., BRANCHER, V. R., OLIVEIRA, V. F. A Construção Social do Conceito de Infância: uma tentativa de reconstrução historiográfica. In. Linhas, Florianópolis: v. 9, n. 1, p. 04-18, jan. / jun. 2008.

COLL, C., MARCHESI, A., PALÁCIOS, J & cols. Desenvolvimento Psicológico e Educação. Volume 1: Psicologia Evolutiva. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2004.

Paulo Victor Sousa

Paulo Victor Sousa é professor do curso de Design Digital da Universidade Federal do Ceará. Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia – PósCom/UFBA (2016), com mestrado no mesmo programa (2012). Atualmente desenvolve pesquisas relacionadas a smartcities, internet das coisas, dispositivos móveis e temáticas afins.

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2 Comentários

  1. Elane Abreu

    Primeiramente, parabéns pelo texto! É aquele pensamento maniqueísta/dualista etc da compreensão tecnológica: connect/disconnect, intereção/não-interação… Vocês fazem bem em discutir a urgência de formas muito mais híbridas de sociabilidade e tecnologias no seio infanto-juvenil. E essas cenas descritas dão uma ideia sensível disso. Aliás, o fato de trazerem essas cenas enriquece o texto de forma singular e que, muitas vezes, é tão desmerecida pelos pesquisadores. Parece proveitoso deslocar o olhar para a infância, “um lugar marginal” dentro dos próprios lares e passeios familiares. Quantas vezes também a criança quer interagir com seus pais e lá estão eles também em seus aparelhos? Contudo, são elas que habitam as “margens” de casa e seu diálogo é deveras filtrado pelos olhos/ouvidos/corpos censores dos adultos. Há muitos cruzamentos interessantes a se tirar daí. Go ahead!

    • Paulo Victor Sousa

      Elane, esse relato etnográfico informal (mais que o usual) é mérito da Bianca, que conseguiu direcionar o próprio olhar de pesquisadora para momentos em que não estava trabalhando. Inclusive me pergunto se seria possível capturar essas cenas se não fosse dessa maneira: puséssemos uma criança ou um adulto numa sala fechada, controlada, cheia de câmeras, e as riquezas sumiriam de imediato.

      As crianças e os adolescentes estão à margem dos discursos, de fato, e acho que a tentativa de diminuição da idade penal é um dos mais graves sintomas na atualidade, embora pareça fazer parte de projetos ideológicos mais complexos que essa primeira mirada. Quanto aos dispositivos eletrônicos, a cultura da culpa e do medo sobre eles acabam caindo no lado mais fraco da corda. Não tem sido raro encontrar um pai ou uma mãe que responde um “pode, filho” sem nem ao menos tirar os olhos do celular. É aquela velha história do efeito de terceira pessoa:
      – Você acha que seu filho sabe usar bem o celular?
      – Não, eu tento controlar.
      – E você, acha que sabe?
      – Ah, eu sei…

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