Profissionais e organizações têm utilizado as plataformas de redes sociais digitais para discutir a sobrecarga feminina relacionada ao trabalho de cuidar. Mas será que travar essa discussão nestes ambientes tem algum impacto positivo na vida das mulheres?

Segundo a Pesquisa TIC Domicílios (2022), a comunicação mediada pela tecnologia é a atividade mais frequente entre os usuários brasileiros de internet. Portanto, nossas interações sociais frequentemente ocorrem nas redes sociais digitais ou são impactadas pelo que acontece nelas.

Como o uso de redes sociais digitais passou a integrar o cotidiano das pessoas, as dinâmicas singulares que envolvem os contextos digitais passaram a constituir parte relevante da forma como cada pessoa percebe a si mesma.

O conceito de “Definição da situação” se refere ao processo de atribuir sentido ao que é vivenciado. Afinal, a maneira que se define o que está ocorrendo em uma situação influencia na forma que as pessoas agem, pois há uma tendência a agir de maneira adequada. Desta forma, quem tem o privilégio de definir o que está acontecendo em uma determinada situação, mesmo que a definição não esteja correta, consegue influenciar como as pessoas orientarão suas ações (Goffman, 1979). 

Recentemente, o termo Economia do Cuidado tem sido utilizado para denominar o trabalho – remunerado ou não – de preservar a vida e o bem-estar de outras pessoas. Falar sobre uma economia do cuidado desafia o privilégio masculino na definição de situações relacionadas à divisão do trabalho. Estamos diante de uma forma de falar que nos convida a dividirmos o trabalho de cuidar de maneira diferente.

Mas como mudar a maneira que mulheres e homens dividem o trabalho na economia do cuidado?

Historicamente o trabalho do cuidado é feito por mulheres, como parte de uma performance de gênero que está relacionada a expectativas e estruturas sociais em cujas interações ocorrem de forma ritualizada.

Assim, o aprendizado sobre quem deve cuidar inicia na família de origem, quando as meninas são responsabilizadas por tarefas domésticas e incentivadas a representar tais tarefas em suas brincadeiras, se desdobrando em abrangentes impactos nas oportunidades que as mulheres têm ao longo de suas vidas.

A naturalização da mulher como responsável pelo trabalho de cuidar é parte de um processo de invisibilização do cuidar enquanto atividade laboral, que corrobora para sua não remuneração ou mal remuneração.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), as mulheres brasileiras trabalham o dobro do tempo que os homens exercendo atividades de cuidado não remunerado. Sendo as mulheres negras ainda mais exploradas em atividades de cuidado não remuneradas e atividades de cuidado mal remuneradas como trabalho doméstico, educação e enfermagem.

Além disso, quando essas mulheres deixam o mercado formal para se ocuparem do cuidado de outras pessoas, elas frequentemente continuam trabalhando no mercado informal em condições precarizadas e sem nenhum direito trabalhista.

Dois principais aspectos colaboram na perpetuação da sobrecarga feminina em trabalhos de cuidado: a falta de políticas públicas voltadas para o tema e o estereótipo de que a mulher é naturalmente responsável por essas atividades.

Assim, utilizar o conceito de economia do cuidado é uma estratégia para mudar o sentido do cuidar e a maneira que mulheres e homens se percebem nesse contexto, mas qual a importância de travar esse debate nas redes sociais digitais?

A inserção de botões que permitem compartilhamentos de conteúdos presentes em uma plataforma de rede social digital, sem acessá-la diretamente é uma mudança de configuração que expande muito o alcance do conteúdo publicado, produzindo também mais dados em termos de possibilidades de interação (i. e. curtidas e compartilhamentos).

Além disso, uma das dinâmicas singulares do uso das redes sociais é a presença de públicos em rede, como um espaço em que podem existir contextos colapsados. Quando publicamos um conteúdo nas redes sociais digitais, estamos atingindo várias audiências como grupos de amigos do trabalho, cônjuge, família, dentre outros. O limite temporal e espacial também é impreciso, gerando uma dificuldade de identificação de quem tem acesso às informações publicadas. Tais características podem ser descritas através do termo audiências invisíveis, ressaltando também na imprecisão quanto aos limites sociais do contexto em termos de separação entre público e privado (Boyd, 2011; 2014).

Responderei ao questionamento feito no início desse texto com mais um questionamento:  De que maneira a difusão do conceito de Economia do Cuidado em um espaço de amplo alcance e de possíveis existências de contextos colapsados como as plataformas de redes sociais digitais contribui para promover estratégias de ação coordenada para a luta por políticas públicas que contemplem a economia do cuidado e para integrar diversas audiências no processo de questionamento do papel da mulher enquanto única responsável pelo trabalho de cuidar?

Referências:

Boyd, D. (2011). Social network sites as networked publics: affordances, dynamics, and implications. In Z. Papacharissi (Org.), A networked self: identity, community and culture on social network sites (pp. 39–58) Routledge.

Boyd, D. (2014). It’s complicated: the social lives of networked teens. Yale University Press.

Goffman, E. (1977). The arrangement between the sexes” In Theory and Society, 4(3): 301-3.

Goffman, E. (1979), Gender advertisements Nova York, Harper and Row.

International Labour Office, 2018. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—dcomm/—publ/documents/publication/wcms_633135.pdf Acesso em 02, junho de 2023. Sem autor: Care work and care jobs for the future of decent work. ILO – Geneva.

Lab Think Olga – Cuidado e Política. Disponível em: https://lab.thinkolga.com/relatorio-final-economia-do-cuidado/ Acesso em 02, junho de 2023.

Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br). (2022). Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros: pesquisa TIC Domicílios, ano 2021. Disponível em: https://cetic.br/pt/arquivos/domicilios/2021/individuos/

ONU Mulheres Brasil, 2023. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/noticias/economia-do-cuidado-e-protagonismo-politico-das-mulheres-indigenas-sao-as-duas-tematicas-discutidas-pela-onu-mulheres-em-programacao-da-enap/. Acesso em: 30, maio de 2023. Sem autor: Economia do Cuidado e Protagonismo Político das Mulheres Indígenas são as duas temáticas discutidas pela ONU Mulheres em programação da ENAP – ONU Mulheres.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101722_informativo.pdf Acesso em 02, junho de 2023. Sem autor: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC)

Ana Barbara Neves

Psicóloga Clínica Individual e de Casais, Doutoranda Psicologia Social e do Trabalho (UFBA), Mestre em Análise do Comportamento University of North Texas (UNT), Especialista em Sexologia (Baiana/Cesex), Membro do Grupo de Pesquisa em Interação, Tecnologias Digitais e Sociedade (GITS POSCOM/UFBA), do Grupo de Trabalho sobre Psicologia e Relações de Gênero (CRP-03) e Ex-Presidente da Associação Baiana de Análise do Comportamento (Casa Comportamental).

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