A obra “Tornar-se Negro”, de Neusa Santos Sousa (1983), desnuda as dinâmicas subjacentes à constituição identitária e psíquica da população negra brasileira. Construído por uma realidade social fundada pela hegemonia de valores e sentidos importados da colonização ocidental-européia, o universo simbólico que regia os limites das imaginações e horizontes identitários era moderado pelos condicionantes sociais, materiais, históricos e comunicacionais vigentes até o fim do século XX. É inegável que as condições de estabelecimento saudável do existir enquanto negr@ neste país continental, desde o sequestro diaspórico de antepassados, passando pela escravização e bloqueios de condições mínimas de bem-viver, bem como a rotinização de símbolos e figuras de referências alheias às suas boas autoidentificações, produziu repercussões violentas à saúde mental desta população, “impactando nas suas possibilidades de felicidade, quando não de seu equilíbrio psíquico” (Sousa, 1983, p.3).


Neusa destaca empiricamente os dilemas da fenomenologia de descobrir-se negr@, quando o “ideal de ego” – conceito psicanalítico – repousava sob a imagem predominante daquele fetiche alvo, reforçado pela hegemonia da brancura na vida cotidiana, em espaços de poder, nas propagandas midiáticas de massa, na representatividade das lideranças que regiam os cafés das manhãs das paquitas loiras, bem como na ausência da potência de figuras míticas e intelectuais, como Maria Felipa e Milton Santos, que favoreceriam o reconhecimento dos brilhos que as cores produzem, para além dos reflexos gerados pela incidência da luz do sol em suas peles. Para além da deflagração do abjeto destino da consciência de um povo, que constitui significativamente uma enorme nação, Neusa deixa como pistas ao caminho de cura e reconstituição de autoestima o fomento de um “outro ideal de Ego”, em harmonia com os fundamentos epistêmicos, estéticos e culturais associados a uma matriz cultural afrobrasileira (Sousa, 1983).

O debate sobre as questões identitárias de povos alheios àquela branquitude tem figurado pauta nos palcos e arenas contemporâneas no século XXI, favorecendo o entendimento e reconhecimento de diferentes perspectivas identitárias e culturais, que integram uma quase infinita possibilidade de configurações de vivências subjetivas resultantes de distintas matizes interseccionais amplamente plurais. Estas são compreensíveis metodologicamente pela mescla das dimensões fundamentais de raça, classe e gênero, conforme vem apresentando brilhantemente a intelectual soteropolitana Carla Akotirene (2018), nos ajudando a refletir sobre os mais diversos horizontes de possibilidades, sobretudo quando insere nesta equação possíveis distinções de cultura, religiosidade, identidades sexuais, geracionalidades, acesso à tecnologia, dentre outros.

Há algo de peculiar nos desmoronamentos das falácias constituídas por uma modernidade de reivindicações metafísicas. O advento de um pós-modernismo aniquila antigas metanarrativas que favoreciam a reificação de expectativas universais de humanidades baseadas em um antropocentrismo eurocêntrico (Harvey, 2014) que tipificou realidades em favor de valores racistas e traíram os sexos dos deuses gregos, ferindo os ordenamentos de verdade da República platônica. Tudo está sendo desmentido pela emersão da pluralidade de modos de existir que podemos assistir, experimentar, interagir e assimilar, graças ao advento da historicidade da técnica. Entendida como “um conjunto de meios instrumentais e sociais com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao
mesmo tempo, cria espaço” (Santos, 2012, p.27), podemos entender que a técnica, que, em si, são meios, inegavelmente deixam de ser coadjuvantes nos tabuleiros da vida social contemporânea, existindo com os humanos nas mais básicas atividades da vida cotidiana, empirizando o tempo e influenciando de alguma maneira os próximos capítulos, em cada cena, do devir da humanidade.

A partir do advento dos meios de comunicação, da internet, da plataformização da vida cotidiana, em seus processos de digitalização, datificação e performidade algorítimica, a historicidade revela um momento único da trajetória humana, em que as lógicas de intercâmbio simbólico, cultural e econômico, bem como os fatos sociais se complexificam sobremaneira, exigindo novas ferramentas e métodos para acompanhar os passos da vida social, que rotineiramente inaugura novos fenômenos, recursos e experiências. Como exemplo, a contemporaneidade tem sinalizado superações quanto à dominação simbólica fundamentada na exclusividade de agências midiáticas de massa, bem como a proliferação de referenciais identitários, que favorecem descobertas de facetas positivas associadas a personalidades e culturas negras. Este fenômeno colabora para a libertação de corpos e mentes, em uma reversão histórica dos sentidos de Tornar-se Negr@, moderados pela promoção de acessibilidade e interconexão identitária mediadas por plataformas digitais, em fenômeno cunhado por “Aquilombamento Digital” em uma pesquisa realizada pelo psicólogo Gabriel Suamme Santana, publicada no livro Aquilombamento Digital: Identidades Negras e Contemporaneidade (SANTANA; SOBRINHO, 2020).

Nesta pesquisa, foram mapeadas, a partir do relato de jovens negr@s, as características de apresentação de conteúdos das páginas/perfis identificados como fortalecedores identitários da cultura afrobrasileira, investigadas suas influências no fortalecimento identitário de jovens negr@s e relacionadas estas informações a indicadores de autoestima destas pessoas. Além de identificarmos temáticas de interesse, perfis/páginas de interesse recorrente, influenciadoras(es) e tipos de conexões realizadas nas plataformas de redes sociais, acessamos, também, narrativas sobre as suas buscas na internet, permitindo identificar que se nutrem cotidianamente de informações sobre militância, entretenimento, acesso à cultura afro, estilos de vida, informação e política. A respeito das eventuais influências percebidas dos perfis/páginas sobre a identificação racial, foi constatado como estas favorecem o acesso e reforçamento de novas possibilidades éticas, a promoção de autoafirmação e autoestima, bem como acesso a figuras de referência/reflexividade, favorecendo a compreensão e adoção de novas formas de pensar e agir no mundo.


Foi aplicada uma escala de avaliação de autoestima validada para o contexto brasileiro (HURTZ, 2011), composta por 10 afirmações relacionadas a um conjunto de sentimentos de autoestima e autoaceitação que avalia a autoestima global. Identificou-se que, em geral, a autoestima de jovens negr@s que utilizam os meios técnicos para acesso a diferentes reflexividades, fortemente vinculadas a aspectos simbólicos positivos em relação às culturas negras, apresentam-se acima da média. Este é um resultado otimista, que reforça o entendimento sobre a influência do acesso a referenciais identitários positivos no manejo da autoestima, em gradativa expansão de apropriação simbólica dos caracteres e condutas associados ao povo negro no Brasil, devido à penetração das Tics na vida cotidiana na contemporaneidade.

Observa-se, pois, que o tempo da atualidade, mediado pela técnica contemporânea, exulta a promoção e acessibilidade de referenciais identitários, sobretudo aqueles positivos, favorecedores de promoção de autoestima, em um processo irreversível e progressivo de assimilação simbólica e
identitária. Este cenário sinaliza a viabilidade material, mediada pelo advento tecnológico, para a promoção identitária de “outros ideais de ego”, alheios àqueles reificados por uma realidade social que imperou na vida cotidiana anterior ao advento da internet. Este resultado favorece reflexões e encaminhamentos de iniciativas para operacionalização de promoção identitária, pressuposta por Neusa Santos Sousa em “Torna-se Negro”, (re)mediada por aquilombamento digital.

É perceptível que ações já estão naturalmente ocorrendo, em dimensões e arranjos híbridos, conforme pode ser notado por iniciativas em diversas esferas da vida social, como de fomento no campo de negócios, realizado pelo Movimento Black Money e pelo hub de Start ups Vale do Dendê; em eventos, como o Afro Punk, no setor do entretenimento; o Instituto Rumpilezz, no campo de educação e cultura, e no desenvolvimento de espaços de disseminação de epistemologias negras em espaços universitários, a exemplo do Projeto Epopéias e Filosofias Negras, implementado por estudantes da Faculdade de Filosofia da Universidade do Estado da Bahia.

Parafraseando Castro Alves em “Navio Negreiro”: “Stamos em pleno mar…” de uma otimista mudança dos tempos, que instaura a retomada da história que foi tomada de assalto do povo negro numa curva da história.


REFERENCIAS :
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte -MG: Leramento: Justificando,2018.

ALVES, Castro. “O navio negreiro”. In: Os escravos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1977.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 15. ed. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2014.


HUTZ, Claudio Simon e ZANON, Cristian. Revisão da apadtação, validação e normatização da escala de autoestima de Rosenberg: Revision of the adaptation, validation, and normatization of the Rosenberg self-esteem scale. Aval. psicol. [online]. 2011, vol.10, n.1, pp. 41-49. ISSN 1677-0471

SANTANA, Gabriel Suamme Lima; SOBRINHO, José Bonifácio do Amparo Sobrinho. Aquilombamento Digital: Identidades Negras & Contemporaneidade. 1. ed. / Gabriel Suamme Lima Santana e Boni Sobrinho. Salvador: Independente, 2020.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção / Milton Santos. – 4. ed. 7. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.


SANTOS, Neuza Souza. Tornar – se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascenção Social. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1983

José Bonifácio

Psicólogo, possui mestrado em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com doutorado interrompido no mesmo programa. É professor substituto do colegiado de psicologia na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde colabora, também, nos colegiados de Filosofia, Ciências Sociais e Sistema de Informação. Coordena os projetos de extensão para disseminação de conhecimentos científico, social e cultural nas plataformas digitais “Plataforma Psicologia UNEB” e “Epopéias e Filosofias Negras”, no canal Filosofia Uneb. É pesquisador e fundador do Centro de Estudos e Pesquisas em Ciências do Comportamento (CEPECC). Possui Professional Trainer Certification do software de análises de dados qualitativos ATLAS.ti. Desenvolve e participa de pesquisas associadas a Psicologia, Sociedade, Relações Étnico-Raciais e Tecnologias Digitais.

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