Em texto passado, falávamos sobre como o espaço físico pode vir a atuar de distintas formas no que diz respeito às interações mediadas, especialmente quando este é posto como um elemento informacional dentro de redes sociotécnicas. Como apontado, as principais considerações sobre as interações lidavam, inicialmente, como as interações pautadas na presença física, encontrando em tecnologias como o telefone um exemplo de mediação para distintas práticas interacionais.
Uma das leituras pioneiras em relação à existência de meios eletrônicos é, sem dúvida, a de Joshua Meyrowitz, com seu No Sense of Place. Meyrowitz, nessa obra, traz abordagens de McLuhan e de Goffman para pensar as consequências em torno dos usos dos meios de comunicação eletrônicos. Ou seja, está claramente mais interessado no que terá como decorrência da utilização e menos no conteúdo da mensagem.
Shaun Moores, em seu livro Media, Place & Mobility, traz à tona interessantes diálogos em torno desses três teóricos – McLuhan, Goffman e Meyrowitz – fazendo notar, inclusive, que o grande mérito deste último foi ter conseguido sintetizar duas perspectivas a priori incompatíveis: de um lado, McLuhan observava as consequências de tecnologias midiáticas no que diz respeito aos modos de organização social, com pouca ênfase na interação social; de outro lado, Goffman preocupava-se com os encontros e interações presenciais, de natureza face a face, sem levar em conta o advento de novos meios diversos. Ao juntar as duas perspectivas, Meyrowitz resultou naquilo que chamou de “situações como sistemas de informação” (Moores, 2012, p. 13).
Esse breve texto busca situar essa ideia dentro do pensamento de Meyrowitz, o que nos ajuda a pensar conceitualmente as rupturas pelas quais passamos com o acesso a meios de comunicação que rasgam o espaço e colocam dois ou mais atores em interações mediadas. Não nos parece, contudo, um conceito totalmente resoluto, ainda que de grande validade quando posto em discussão, justamente por apontar que as informações que giram em torno (ou fazem parte) daquele contexto interacional é que possuem mais poder de decisão para a situação que as estruturas e metáforas físicas.
Situações como sistemas de informação
O termo nos coloca, inicialmente, diante daquilo que Goffman compreendia por situação – ou contexto, para Giddens. Giddens define contexto como “faixas” espaço-temporais que abarcam as reuniões entre os atores envolvidos. Já Goffman utiliza a palavra “situação” para descrever o mesmo fenômeno, sublinhando seu término justamente com o fim daquele dado ajuntamento de pessoas ali encontradas.
O conceito de ajuntamento nos remete à compreensão de um encontro entre dois ou mais atores envolvidos numa reunião temporária e nos limites da percepção imediata – um encontro ao acaso numa esquina ou uma reunião de negócios previamente planejada, tanto faz. Para quaisquer dos fenômenos ocorridos, as situações, conforme nos diz Goffman, devem ter início e fim, sendo sustentada por seus atores que ali se encontram em interação (vale lembrar que os motivos de tal sustentação passam ao largo do propósito de Goffman, que está mais interessado nas características estruturais da interação que em seus porquês; há, afinal, incontáveis motivos em jogo, desde paqueras a arranjos políticos).
Dessa forma, ao observar o uso de meios eletrônicos para além dos significados de suas mensagens (rompendo, pois, com perspectivas centradas na hermenêutica ou no “caminho” da comunicação), Meyrowitz acaba por estabelecer, em termos interacionais, um paradigma distinto daquele que presume um elo obrigatório com a presença física dos atores envolvidos. O autor assim, argumenta que as situações devem ser pensadas a partir de “padrões de acesso à informação”, não simplesmente por suas características ou estruturas físicas (Shaun Moores faz notar que, por “informação”, Meyrowitz refere-se a perfomances dos atores, não a pacotes elementais de dados, por exemplo). E quando novos meios chegam às situações antes não-mediadas, é presumível que novas configurações sejam enxergadas ali. “New media, therefore, may have an effect on interacitions in places in which media are neither present nor thought about” (Meyrowitz, p. 174).
Com efeito, Meyrowitz muito se refere aos efeitos que meios como a TV ou o rádio trazem às situações de presença física – e não à toa propunha repensar os termos definidores da situação à maneira como pensada por Goffman. Meyrowitz ressalta que boa parte do foco dos interacionistas estava localizado em como as situações eram definidas e protegidas de rupturas em geral – além, claro, como elas são quebradas e reparadas em seguidas. Por uma quebra de situação, podemos pensar num ator que, à revelia das regras (implícitas ou explícitas) de certa ocasião, venha a agir de maneira totalmente estranha àquele encontro (gritando quando se requer uma fala normal, ou sussurrando quando se demandam gritos, por exemplo) ou por ocorrências alheias àquela ocasião (um temporal, uma queda de energia). O interesse de Meyrowitz, contudo, situa-se mais nas alterações comportamentais quando as mudanças, ataques, rupturas são elementos constantes com a chegada dos meios eletrônico, ressaltando que nossas interações não mais são totalmente focadas com o interlocutor presente, simplesmente, mas que encontram em outros fluxos comunicacionais elementos que desestabilizam aquela interação focada.
Dois dos elementos básicos das situações são a região de fundo e de fachada. Tais regiões são tratadas por Goffman como zonas em que certos atores, tidos como audiência de dada situação, devem ou não se encontrar. Na sua perspectiva dramatúrgica, uma região de fachada é similar a um palco, enquanto a de fundo compreende os bastidores daquela cena tocada. Por exemplo, a cozinha de um restaurante é a região de fundo da cena que é tocada no salão em que se encontram os clientes: lá, garçons, cozinheiros, ajudantes e outros funcionários podem agir da maneira que lhes convém, sem precisar seguir contratos ou scripts de representação (entretanto, a própria cozinha pode vir a ser a região de frente de outra situação e ter, por sua vez, outros bastidores não muito claros dentro daquele contexto; não é, portanto, a mera estrutura física que determina a separação entre regiões). Quando adentram o salão principal, contudo, levando os pratos às mãos, os garçons, que antes podiam assumir uma conduta informal, passam a adotar estilos linguísticos e comportamentais específicos para aquela nova região – a saber, de fachada.
Para Meyrowitz, contudo, esse modelo é estático e descritivo, e propõe que ele venha a ser pensado, de fato, como variável e preditivo. É justamente esse versão acomodada sobre o que é situação que Meyrowitz pretende atacar, destacando que novas formas de interação estavam surgindo e retirando esse papel de fronteira do espaço físico. Sublinha, assim, que as barreiras físicas são marcadas por estruturas físicas, e que elas mesmas determinavam os fluxos, direções e demais características das possibilidades de interação dentro do mesmo palco, mas busca mostrar que com novas tecnologias de comunicação eletrônica nas décadas de 70 e 80, as coisas estavam mudando um bocado:
Until recently, place-bounded, face-to-face interaction was the only means of gaining ‘direct’ access to the sights and sounds of each other’s behaviors (p. 35).
Nesse sentido, Meyrowitz também se questiona se são apenas as configurações espaciais que têm algo em relação ao comportamento ou se há algo mais, talvez imperceptível ainda naquele momento, que se confundisse com o lugar. Dito isto, sublinha que a percepção de Goffman sobre a a passagem entre as regiões de frente e de fundo são muito ligadas à localização física. Voltando ao exemplo do restaurante, bastante frisada por Goffman, Meyrowitz mostra que a ausência de patrões no local pode dar espaço para que o próprio salão principal venha a se configurar numa região de fundo.
O que Meyrowitz tenta fazer, claramente, é mostrar que há outros elementos em jogo que não apenas a própria estrutura física. Paredes importam, claro, mas não apenas: o reconhecimento de atores e de dados em circulação é algo crucial. Dessa forma, busca mostrar que os padrões de informação importam na medida que os atores da cena percebam que tipo de encenação devem ter. “It is no the physical setting itself that determines the nature of the interaction, but the patterns of information flow” (p. 36).
Meyrowitz, assim, busca pensar em termos de continuidade em relação aos meios. Mídias e configurações físicas não são contrárias: devem ser pensadas em elo. A ideia de sistemas de informação traz essa perspectiva de padrões de acesso ao comportamento das pessoas. Meyrowitz considera que essa visão não é contraditória em relação ao que pensam os interacionistas em geral, quando na verdade avança na concepção das interações in locu, e ainda defenestra as concepções que tendem a enxergar uma separação dualista entre as ações que sofrem mediações eletrônicas e as que não passam por tal.
The notion of situations as information-systems allows for the breakdown of the arbitrary distinction often made between studies of face-to-face interaction and studies od mediated communications. The concept of information-systems suggests that physical settings and media ‘settings’ are part of a continuum rather than a dichotomy. Places and media both foster set patters of interaction among people, set patterns of social information flow (p. 37).
Trocando em miúdos, Meyrowitz considera que os lugares criam um tipo de sistema de informação, notoriamente o encontro ao vivo, presencial, mas também acha que os meios de comunicação eletrônicos criam outros tipos de situação. Ver então as situações como sistemas de informação, não apenas como lugares definidos por barreiras físicas, acaba sendo de relevância justamente porque os estudos dos meios eletrônicos diminuem as diferenças entre o presencial e as mediações. Para Meyrowitz, o que divide os territórios das regiões de fundo e de frente não é necessariamente uma barreira física. Um modo de enxergar essa argumentação baseia-se justamente no contrário: ao invés de buscar a capacidade de definição, pode-se tentar entender a desconstrução da situação. Perder a definição da situação é perder a habilidade de tocar certas ações específicas e adequadas àquele contexto específico, afinal.
Thus if performers lose the ability to keep their back region behavior separate from their front region behavior, they not only lose aspects of their privacy, they also lose the ability to play certain parts of their front region roles (p. 46)
Como já apontado no início do texto, a ideia de situações enquanto sistemas de informação, ainda que muito interessante, não nos parece totalmente bem resolvido, nem é totalmente uma resolução em si para outras questões. Goffman já apontava que a leitura da situação faz parte de sua definição, e igualmente seus atores estão sempre em contínua leitura e readaptação para uma devida manutenção da mesma (e das regiões que lhe dão forma). Além disso, Meyrowitz parece colocar grande peso no papel de reconfiguração que as tecnologias eletrônicas estavam por trazer às nossas interações, mediadas ou presenciais, mas essa perspectiva não dá conta daqueles contextos que são unicamente criados por mediação eletrônica. Assim, parece fazer total sentido que, entre dois ou mais atores, criem-se até mais de um sistema de informação que defina as diversas situações em que eles se encontram: de papos no Whatsapp, conversações específicas no Facebook, pequenos diálogos no Instagram e trocas de e-mails com teores profissionais, cada contexto/situação parece pedir sua própria definição, mas, ao mesmo tempo, parecem perpassar e concentrar as demais situações.
De qualquer forma, vem a calhar o pensamento de Meyrowitz justamente por colocar em jogo a comunicação e a mediação eletrônicas enquanto elementos de desestabilização das interações e das situações – o que Goffman não chegou a realizar.
Referências
- Giddens, A. A constituição da sociedade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
- Goffman, E. Comportamento em lugares públicos: Notas sobre a organização social dos ajuntamentos. Petrópolis: Vozes, 2010.
- Goffman, E. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1999.
- Meyrowitz, J. No sense of place: The impact of electronic media on social behavior. New York, Oxford: Oxford Univesity Press, 1985.
- Moores, S. Media, Place & Mobility.
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